Blues Holográfico

On 15 de novembro de 2012 by Max Valarezo

Se havia naquela festa ilusões perdidas, tristezas ou quaisquer sentimentos que deixam a gente descrente na vida , ninguém percebia. Não mesmo, pois, bem ali no canto, senhoras e senhores, estava ninguém menos que Cazuza. Não, vocês não me entenderam mal, amigos meus. Ali sentava o poeta rebelde dos anos oitenta, puro risos, cachos castanhos e carne. Carne em forma de luz. Cazuza em forma de holograma.

O retorno do cantor já figurava no topo dos melhores momentos de 2013. Certeza que seria o destaque na retrospectiva de fim de ano da Globo, certeza! Mal havia encerrado os primeiros shows agendados da aguardada turnê de retorno, surgiram mais centenas de oportunidades para fazer outras apresentações. O programa do Raul Gil queria Cazuza. O da Fátima Bernardes, aquele das manhãs, queria Cazuza. A MTV já cogitava fazer o Acústico do Cazuza. O poeta estava de volta, em toda a sua glória e desbravando com euforia o terreno artístico nunca explorado no entretenimento brasileiro: o do ídolo revivido.

Naquela festa, depois do show em Brasília, o holograma do artista era rei, soberano cercado de súditos em êxtase. Lá estava todo o tipo de gente. Ney Matogrosso e Bebel Gilberto não desgrudavam um minuto sequer do cantor em forma de luz. Figurões da indústria fonográfica discutiam com produtores os possíveis compromissos futuros do astro. Um grupo de fãs, vencedores de um concurso da rádio Transamérica, se aproximava sem conseguir conter os largos sorrisos. Não podiam acreditar que encontravam um ídolo anteriormente dado como perdido para sempre. Se antes os heróis morriam de overdose, agora voltavam de ctrl+z.

Como não poderia deixar de ser, Cazuza exalava a sensualidade que o tornou popular entre moças e rapazes. Como não poderia deixar de ser, moças e rapazes olhavam-no com o interesse lascivo da juventude frente a um rock star. Logicamente que nenhuma forma de deleite carnal poderia ser consumada. Não se trepa com raios de luz, oras. Mas nem o sexo fazia falta a Cazuza, a intensa glória que o cercava já lhe servia de prazer suficiente.

Passadas as primeiras horas de festa, Cazuza não era mais abordado pela gente bonita que ria. Essas não tinham mais como se aproximar, com tantos engravatados cercando o astro com propostas de shows, entrevistas, aparições públicas e propagandas. Até convite do Ministério da Saúde rolou. Publicitários inclusive já tinham bolado a campanha de prevenção a DSTs do próximo carnaval: Cazuza a dizer “Não conte com hologramas pra te trazerem de volta da Aids. Neste carnaval, use camisinha!”.

Essa última proposta não era tão ruim (apenas o slogan era terrível). Mas o resto, ah, o resto já tava virando palhaçada, tudo um bando de gente chata, que não deixava Cazuza se divertir. “Parece brincadeira, retorno e já me querem em outdoors! Acho que se minha bunda fosse material agora, eles enfiavam a mão nela pra ver se dava pra tirar mais dinheiro de lá também!”, irritou-se o astro. Pelo visto, a gente careta por quem ele pedia piedade ainda estava por aí.

Se os punhos de Cazuza fossem materiais, ele teria revirado uma mesa, dado uns tapas em caras insuportáveis que já não lhe deixavam aproveitar a festa. Mas como a holografia não lhe tinha quitado o dom da voz e da palavra, ele fez questão de xingar cada um dos oportunistas dos piores nomes que se poderia xingar alguém na década de 80.

Eles foram embora, e Cazuza pôde voltar a se concentrar na parte boa da festa. Mas foi avançando a madrugada e o cantor, apesar de amansado, não podia deixar de se impressionar com o maciço assédio que a cobiça alheia tinha lhe proporcionado desde o retorno. Covardes e aproveitadores não eram frutos surgidos em 2013, isso ele tinha bem claro. Porém o fervor da ressurreição era tão inédito no mundo do entretenimento que a reação da indústria parecia desmedida até para os padrões do novo século.

E o que poderia acontecer com ele se desse procedimento ao jogo? Logo a glória do retorno perderia seu efeito e novamente seriam necessários o sexo e as drogas. Logo viriam o cansaço e o tédio; e ser um cansado em carne e osso ainda era melhor do que ser um cansado na forma de luz, afinal. A festa estava boa, mas Cazuza percebeu que em breve a emoção acabaria.

Cazuza chamou Ney de lado e sussurrou no ouvido dele por um tempo. Ney encarou o amigo com seriedade. Com o cenho enrugado, ele disse palavras de carinho a Cazuza, se levantou e virou a água de um aquário sobre o aparelho holográfico. Em meio à fumaça, às faíscas e aos gritos de espanto dos presentes, viu-se a imagem de Cazuza piscar e ficar cada vez mais translúcida, o som da voz dele se desvanecendo, levando junto os cachos e o sorriso. Em meio ao desespero dos convidados, Cazuza morreu para sempre pela segunda vez.

Faz parte do show dele.

 

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Não entendeu de onde veio essa história de holograma do Cazuza? Confira aqui a notícia na Folha.com: http://migre.me/bS1ov

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